ARBÍTRIO E INCONSTITUCIONALIDADE NA
LEI DE LAVAGEM DE DINHEIRO OU BENS
Prof. Plínio Gustavo Prado Garcia
O tema deste artigo foi por mim inicialmente abordado em 1998, logo após o advento da Lei 9.613, de 3 de março de 1998. Mas, por persistirem as razões que justificaram sua elaboração, vejo-me forçado a voltar, aqui, ao assunto.
Antes desse artigo, em outro sob o título “‘Estadania’ x Cidadania” já houvera eu afirmado que não somos uma nação de direitos conquistados, mas de direitos negados ou concedidos pelos detentores do poder.
O constante conflito entre o Estado e o cidadão, entre o Fisco e o contribuinte, entre a autoridade do momento e os “administrados” evidencia a necessidade de estabelecer uma linha divisória entre o que é interesse público e o que é mero interesse do Estado, da Administração Pública e da Fazenda Pública.
Esses interesses nem sempre são coincidentes, especialmente quando o Estado e os servidores públicos se afastam do objetivo único de promoção do bem comum.
Isso nos leva a adotar uma postura de alerta e vigilância e de constante busca da garantia e do respeito aos direitos individuais, contra incursões inconstitucionais e ilegais dos detentores do poder.
Que o inferno está repleto de boas intenções é frase bem expressiva e bastante conhecida, pelos seus próprios fundamentos.
A Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, que dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos nela previstos; e que cria o Conselho de Controle das Atividades Financeiras – COAF — é um exemplo de medida legislativa bem intencionada mas que traz inaceitáveis limitações aos direitos e garantias individuais protegidos pela Constituição Federal.
Pretende dita Lei punir com pena de reclusão quem oculte ou dissimule a natureza, a origem, a localização, a disposição, a movimentação ou a propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, dos crimes que especifica.
Esses crimes são os relacionados com o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; terrorismo; contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; extorsão mediante seqüestro; crimes contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; crimes contra o sistema financeiro nacional e os praticados por organização criminosa.
Para esses casos, a Lei prevê pena de reclusão de três a dez anos e multa, aplicável também a quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer desses crimes: os converta em ativos lícitos; os adquira, receba, troque, negocie, dê ou receba em garantia, guarde ou os mantenha em depósito, ou, ainda, venha a movimentá-los ou a fazer sua transferência.
A penalidade recai também sobre quem importe ou exporte bens com valores não correspondentes aos verdadeiros.
E não pára aí. Incorre, ainda, na mesma pena quem utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes mencionados na Lei; quem participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de qualquer desses crimes.
Se não houver a consumação de qualquer desses crimes, a simples tentativa é punida nos termos do parágrafo único do artigo 14 do Código Penal, isto é, com pena diminuída de um a dois terços.
O agravamento da pena ocorrerá se o crime for cometido de forma habitual ou por intermédio de organização criminosa, e a redução da pena poderá ocorrer se o autor, o co-autor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimento que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.
Pode-se dizer que, até aí, a intenção da Lei é boa e se coaduna com o interesse público. Mas só até aí, pois daí em diante padece de arbítrio e de inconstitucionalidade em diversos de seus dispositivos.
Não pretendo, neste artigo, entrar na discussão dos aspectos relacionados com as disposições processuais especiais da Lei, nem dos efeitos patrimoniais e da interdição de direitos decorrentes da condenação penal, estejam no País ou no exterior os bens, direitos ou valores oriundos desses crimes.
Táticas de Terror Estatal
Se, até ali, enquanto se limita a Lei a tipificar os crimes de que trata e prever sua punição, o interesse público parece estar sendo satisfeito, o mesmo não se pode dizer quando impõe a terceiros (empresas e pessoas físicas) obrigações que ultrapassam as raias da razoabilidade e descambam para a inconstitucionalidade.
Ora, essas obrigações são inteiramente descabidas e desnecessárias. Criam no País um clima de insegurança jurídica e estimulam a formação da cultura da delação.
Que obrigações, afinal, são essas? Na Lei em comento, elas podem ser classificadas em obrigações de fazer e obrigações de prestar informações.
As pessoas (jurídicas) sujeitas a essas obrigações impostas pela dita Lei são as mencionadas no seu artigo 9º. Basta que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira; a compra e venda de moeda estrangeira ou ouro como ativo financeiro ou instrumento cambial; a custódia, emissão, distribuição, liquidação, negociação, intermediação ou administração de títulos ou valores mobiliários.
Como se não bastasse isso, a Lei impõe essas obrigações, também: às bolsas de valores e bolsas de mercadorias ou futuros; às seguradoras, às corretoras de seguros e às entidades de previdência complementar ou de capitalização; às administradoras de cartões de credenciamento ou cartões de crédito, bem como às administradoras de consórcios para aquisição de bens ou serviços.
As exige também, das administradoras ou empresas que se utilizem de cartão ou qualquer outro meio eletrônico, magnético ou equivalente, que permita a transferência de fundos; das empresas de arrendamento mercantil (leasing) e de fomento comercial (factoring); das sociedades que efetuem distribuição de dinheiro ou quaisquer bens móveis, imóveis, mercadorias, serviços, ou, ainda, concedam descontos na sua aquisição, mediante sorteio ou método assemelhado.
Obriga, também, as filiais ou representações de entes estrangeiros que exerçam no Brasil qualquer das atividades listadas nesse artigo 9º da lei, ainda que de forma eventual.
Abrange, ainda, as demais entidades cujo funcionamento dependa de autorização de órgão regulador dos mercados financeiro, de câmbio, de capitais e de seguros.
Estende-se, igualmente, às pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras que operem no Brasil como agentes, dirigentes, procuradoras, comissionárias ou por qualquer forma representem interesses de ente estrangeiro que exerça qualquer das atividades referidas nesse mesmo artigo 9º.
Não ficam de fora as pessoas jurídicas que exerçam atividades de promoção imobiliária ou compra e venda de imóveis, nem as pessoas físicas ou jurídicas que comercializem jóias, pedras e metais preciosos, objetos de arte e antigüidades.
As obrigações
As obrigações delas exigidas pelo artigo 10 da Lei nº 9.613/98 não se limitam à identificação de seus clientes, pois abrangem a manutenção de cadastro atualizado, o registro de toda transação cujo valor ultrapasse (individualmente ou no seu conjunto em um mesmo mês-calendário) o limite fixado pela “autoridade competente” e nos termos “de instruções por esta expedidas”.
São, também, obrigadas a atender, “no prazo fixado pelo órgão judicial competente” as requisições formuladas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).
Como se não fosse o bastante, a Lei exige que esses cadastros e registros sejam conservados durante período mínimo de cinco anos a partir do encerramento da conta ou da conclusão da transação, permitindo que a “autoridade competente” venha a ampliar discricionariamente esse prazo.
Delação Inconstitucional
O artigo 10º da Lei em exame institui no Brasil o nazismo no campo da comunicação de atividades financeiras.
A partir da vigência dessa Lei de 3 de março de 1998, as pessoas acima mencionadas não são mais instituições privadas. Ficam transformadas em agentes da Fiscalização e da Administração Pública, sem remuneração por seus serviços, mas submetidas, de outro lado, às graves penalidades prescritas no artigo 12º sob o título de “Responsabilidade Administrativa”.
As absurdas cominações, que se iniciam com advertência, abrangem, cumulativamente ou não, multa pecuniária, inabilitação temporária e cessação da autorização para operação ou funcionamento.
Quanto à multa pecuniária, é ela variável de um por cento até o dobro do valor da operação, ou até duzentos por cento do lucro obtido ou que presumivelmente (?) seria obtido pela realização da operação, ou, ainda, multa de até R$200.000,00 (duzentos mil reais). Ora, nenhum servidor público nas mesmas condições se acha submetido a tais despautérios.
Apresentam-se também desmedidas, irrazoáveis, absurdas e inconstitucionais as penas de inabilitação temporária, pelo prazo de até dez anos, para o exercício do cargo de administrador das pessoas jurídicas que a lei considera a ela sujeitas.
Mais grave ainda, pretender cassar a autorização para operação ou funcionamento pelo descumprimento de obrigação que entendemos injustificada, desnecessária e que, se cumprida, poderia ensejar contra quem a tenha cumprido, o ajuizamento, pelo cliente, de ação indenizatória ou por danos morais.
Não se pode esquecer que as exigências de cadastro e registro das operações dos clientes esbarra, muitas vezes, nas imposições constitucionais do dever de sigilo e de respeito à intimidade.
A Constituição Federal garante, também, a segurança jurídica, a ordem social, a livre iniciativa e o respeito ao devido processo legal e ao direito de ampla defesa.
A delação institucionalizada quebra a ordem social e traz intranqüilidade nos negócios e nas relações pessoais e profissionais.
No Estado Democrático de Direito os meios têm de ser condizentes com os fins perquiridos. Não basta a boa vontade do legislador nem da autoridade administrativa. Impõe-se o respeito à Constituição e às garantias que ela oferece aos direitos individuais e coletivos.
Recomendação
Diante desse grave quadro para as pessoas jurídicas(e físicas) que a Lei nº 9.613/98 transforma inconstitucionalmente em delatores e “coadjuvantes da Administração Pública” só me resta recomendar a adoção de medidas judiciais preventivas para evitar sua submissão aos rigores dessa lei.
A alternativa será a assunção dos riscos de serem punidas com advertência, multa pecuniária, inabilitação temporária ou cassação de autorização para operação ou funcionamento. Caso em que terão de enfrentar as autuações e até mesmo a acusação de estarem cooperando com prática dos crimes tipificados nessa lei.
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Plínio Gustavo Prado Garcia é advogado em São Paulo, fundador e sócio senior de Prado Garcia Advogados, formado em Direito pela Universidade de São Paulo, em 1962, e pela George Washington University, National Law Center, de Washington, D.C., em 1972, onde obteve o título de “Master of Comparative Law – American Practice”. É especialista em Direito Tributário, título que lhe foi conferido em 1984 pelo Centro de Estudos de Extensão Universitária (CEEU). Por vários anos lecionou Direito Tributário nas Universidades São Judas Tadeu, e Direito Civil (Obrigações e Contratos) na Faculdade de Direito da FMU, em São Paulo. É membro da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), entre outros. É também autor de grande número de artigos e outras obras jurídicas, consultor jurídico e parecerista.